quarta-feira, 31 de outubro de 2007

Tomada de consciência

Há uma semana ouvi da Diretora Médica para Segurança dos Pacientes do Children’s Memorial Hospital de Chicago a declaração: a assistência médica-hospitalar é uma das mais inseguras atividades humanas. O choque inicial provocado pela declaração veio seguido da constatação de que sim, a atividade médica-hospitalar é muito insegura, talvez realmente, a mais insegura atividade humana. Há oito anos, o Instituto de Medicina Norte-Americano, um órgão comparável ao nosso Conselho Federal de Medicina publicou um estudo aterrador no livro To Err is Human (Errar é Humano). Nesse estudo revela-se que nos Estados Unidos (uma das mais avançadas e caras medicinas do mundo), entre 56.000 e 98.000 pessoas morrem a cada ano vítimas de “acidentes” relacionados à assistência médica.

Esse número de mortes coloca as causas ditas “iatrogênicas” como a 8ª. principal causa de morte naquele país, ganhando da AIDS, do Câncer de Mama e dos acidentes por veículos automotores. Estatísticas semelhantes foram demonstradas no Reino Unido, na Austrália, no Canadá e em outros países desenvolvidos. No Brasil, não temos ainda qualquer estatística que aborde essa questão, mas não tenho dúvidas de que, na melhor das hipóteses, estamos nos mesmos patamares norte-americanos. Seguramente, dezenas ou centenas de pessoas morrem diariamente por doenças que não possuíam ao serem internadas em hospitais por todo o país. Afinal, por que haveríamos de ser diferentes dos países mais ricos?

Além do enorme custo em vidas humanas, essas complicações têm enorme custo econômico, transformando-se num verdadeiro ralo de dinheiro, particularmente no serviço público, mas afetando também duramente o sistema privado. Em tempos de discussões acaloradas sobre a CPMF e a emenda 29, é necessário que tomemos real consciência desses fatos e iniciemos discussões profundas, tanto na sociedade civil quanto nos meios relacionados à saúde. Está na hora do discurso de melhoria da qualidade da assistência médica deixar de ser mero tema político-eleitoral e passar a ser abordado de forma científica, com a seriedade e a isenção que o assunto merece. É muito fácil encontrarmos culpados quando erros na assistência médica ocorrem, mas na enorme maioria das vezes o erro não está num indivíduo ou num grupo de indivíduos, a doença é sistêmica e como tal deve ser tratada.

quinta-feira, 23 de agosto de 2007

Deu no New York Times...


A edição de 21/08/2007 do New York Times, noticiou que a partir de outubro de 2008, daqui a pouco mais de um ano, o Medicare - securidade social governamental americana para os idosos - não mais pagará os hospitais por despesas decorrentes de algumas complicações adquiridas dentro do hospital.

Essas complicações foram consideradas pelo Medicare como "condições que podem ser razoavelmente prevenidas". Algumas dessas condições são frequentes, outras são mais raras, a lista das inicialmente consideradas incluem:
  • Úlcera por pressão (escara de decúbito)
  • Lesões causadas por quedas
  • Infecções relacionadas a cateteres venosos
  • Infecções urinárias relacionadas a sondagem vesical
  • Tratamento de pacientes nos quais foi esquecido objetos durante a cirurgia
  • Complicações decorrentes de transfusões de sangue incompatível
O New York Times afirma,ainda, que algumas seguradoras privadas estão pensando em caminhar na mesma direção. Além disso algumas outras condições preveníveis estão sendo consideradas como septicemia por S. aureus, pneumonia associada a ventilação mecânica e infecção por C. difficile.

Se a moda pega, e olha que não é muito difícil de pegar, muito em breve os agentes pagadores da saúde complementar no Brasil podem tomar a mesma conduta. Até há alguns anos, tanto a justiça, como os agentes pagadores consideravam as complicações decorrentes da assistência médico-hospitalar acima como simplesmente inevitáveis. Eram complicações que podiam e deviam ser diminuidas, mas nunca conseguiríamos eliminá-las.

A areia no sapato foi a Campanha 100.000 vidas (atualmente 5 milhões de vidas) que demonstrou que é possível, sim, eliminar essas complicações com cuidados simples e baseados em evidências científicas.

Vou tentar, no próximo artigo, analisar as possibilidades de implementação da Campanha 5 Milhões de Vidas no Brasil e suas consequências.

quinta-feira, 12 de julho de 2007

Dois séculos depois...

Li recentemente um interessante texto de Michel Foucault chamado O Nascimento do Hospital. Nele o autor conta que "a consciência de que o hospital pode e deve ser instrumento destinado a curar aparece claramente em torno de 1780". Apesar de registrarem-se a existência de instituições hospitalares já no século V a.C.

Anteriormente o hospital servia mais como um depósito de doentes, que deveriam ser afastados da sociedade para protegê-la do contágio de doenças e de contato com seus miasmas. Obviamente, confinados em condições insalubres, esses doentes tornavam-se mais doentes e acabavam morrendo, confortados, na maioria das vezes, por religiosos preocupados em ganhar a vida eterna através de imensa caridade.

Espelho dessa vocação hospitalar anterior ao século XVIII é o surgimento da Ordem Camiliana em 1591, tamanho era o comprometimento de Camilo de Lellis com os doentes que os religiosos camilianos além dos votos tradicionais na Igreja Católica de pobreza, obediência e castidade, precisam fazer um quarto voto, o de não abandonar os doentes mesmo que sob intenso risco de adquirir doenças mortais (na época a mais temida era a peste).

Em 1870 apenas o hospital foi medicalizado, até então a atividade médica não ocorria dentro dos hospitais. Essa medicalização surgiu, segundo Foucault, nos hospitais militares e teve essencialmente um cunho econômico, não era mais aceitável perder-se militares treinados.

O hospital deixa de ter o objetivo de isolamento e conforto para a morte e passa a ser um local de cura. Há mais de um século, Florence Nigthtingale, afirmava que no ano 2000 começaríamos a pensar em retirar os doentes do hospital e cuidar deles em suas próprias casas.

Florence foi visionária, hoje isso realmente acontece, cresce a tendência a desospitalizar os pacientes e tratá-los em suas próprias casas ou em hospices. Hoje o hospital está sendo vocacionado ao tratamento de pacientes graves as UTIs tomam cada vez mais espaço dentro dos hospitais.

Como disse em artigos anteriores, apenas em 1999 com a publicação de "To Err is Human" é que tomamos consciência de que o hospital continua causando muito dano aos pacientes. O interessante é que passaram-se mais de 200 anos da constatação de que isso acontecia nos hospitais medievais e renascentistas para constatarmos que continua acontecendo nos nossos hospitais no dia de hoje.

A cada dia que passa, convenço-me mais da necessidade de uma revolução na saúde. Talvez refazer a revolução ocorrida no século XVIII.

sábado, 7 de julho de 2007

O modelo do queijo suiço


Voltando a abordar os eventos adversos evitáveis em saúde (também chamados de erros médicos), é necessário entender como eventos que levam a grandes erros ocorrem. Não somente em medicina, mas quando se estuda fenômenos que causaram lesões graves, como queda de aviões, desabamento de construções e outros, frequentemente observamos que não há um único erro responsável pelo evento, mas sim uma seqüencia de erros menores. Esses erros menores, isoladamente não causariam por si a catástrofe, mas sua seqüência, sim!


Em 1990 James T. Reason propôs o Modelo do Queijo Suiço. Esse modelo consiste-se de múltiplas fatias de queijo suiço colocadas lado a lado como barreiras à ocorrência de erros. Em algumas situações (como no desenho acima) os buracos do queijo se alinham, permitindo que um erro passe pelas múltiplas barreiras causando o dano.

Suponha por exemplo, que tenha ocorrido erro no sítio cirúrgico (local da cirurgia), o joelho esquerdo foi operado ao invés do direito. Vamos traçar uma seqüência de furos que levaram o fato a ocorrer.
1. No consultório do ortopedista, paciente e médico combinam a cirurgia eletiva, o médico examina a ressonância magnética do joelho esquerdo, explica ao paciente e faz a solicitação. Por distração, na solicitação anota artroscopia de joelho direito (primeiro furo na barreira).

2. O paciente não verifica a anotação, a letra é difícil de entender e afinal é somente um pedido de internação para cirurgia, ele jamais imaginaria que poderia haver erro nessa solicitação.

3. A cirurgia é marcada no hospital, todos os registros apontam para artroscopia de joelho direito.

4. O paciente é internado e os dados de internação são anotados conforme a solicitação de internação do médico (segundo furo na barreira).

5. Como há um curto período de tempo, a enfermagem do andar prepara o paciente para a cirurgia no joelho direito, não há checagem sistemática implantada (terceiro furo na barreira).

6. O paciente recebe visita pré-anestésica e recebe medicação pré-anestésica e desce para o centro cirúrgico sedado (quarto furo na barreira).

7. Todo equipamento está preparado para cirurgia de joelho direito (quinto furo na barreira).

8. O paciente é submetido à cirurgia no joelho incorreto.

Como pode-se verificar no exemplo acima, em vários momentos havia a possibilidade de se checar e confirmar o correto sítio cirúrgico, porém em nenhum momento isso aconteceu. Furos nas possíveis barreiras (fatias do queijo) permitiram a ocorrência do erro. Muitos outros exemplos semelhantes podem ser colocados aqui. É essencial que os hospitais e sistemas de saúde assumam uma política de gerenciamento de risco e instalem efetivas barreiras de proteção contra possíveis erros. Quanto menos furos houver, mais seguro será o hospital para o paciente.

Li um texto de Michel Foucault espetacular... Falarei dele no próximo artigo.

terça-feira, 3 de julho de 2007

O piloto morre com os passageiros!


Hoje conversei com os familiares de uma paciente, um deles piloto de avião! Conversávamos sobre erro médico e essa pessoa usou uma expressão que já conhecia mas que é genial quando tentamos entender as falhas na assistência à saúde.

Na maioria das atividades humanas, quando um erro ocorre, o causador do erro sofre dano. Por exemplo, se um piloto comete um erro e isto provoca a queda do avião, o piloto também morrerá na queda. Em uma indústria, quando um erro ocorre, o trabalhador pode ser diretamente lesado física ou financeiramente pelo erro.

Nesse aspecto, na medicina, como em outras ciências ditas da saúde, quando um erro ocorre o único afetado é o paciente. Os agentes não sofrem dano, pelo contrário, muitas vezes auferem lucro a partir do erro. Isso torna o compactuar com o evento adverso na área de saúde uma atitude perversa.

A aviação comercial conseguiu índices de segurança impensáveis há 30 ou 40 anos atrás. Em medicina, apenas a anestesiologia trabalha focada em risco zero, as outras especialidades, como disse anteriormente nesse blog, acham aceitáveis taxas de erro de até 20%.

A aviação comercial tomou a dianteira na segurança dos passageiros, indústrias trabalham com níveis de erro baixíssimos. Está na hora de investirmos seriamente na criação de ambientes livre de erro em assistência à saúde. A tarefa é árdua mas nossa meta deve sempre ser zero.

Zero em infecção hospitalar, zero em complicações cirúrgicas, zero em úlceras de pressão, zero em erros de medicação. Será fácil consegui-lo? Seguramente não! Pessoas de má fé poderão utilizar-se dessas metas para conseguirem lucros judiciais? Seguramente sim, infelizmente. Mas esse é um caminho sem volta. Ou nos esforçamos em caminhar nessa direção, ou não sobreviveremos às exigências do mercado em cinco a dez anos!

Como disse no primeiro artigo desse blog, esse é o desafio do século. Estou seguro que alcançaremos essa meta!

domingo, 1 de julho de 2007

Erro Médico

É hora de abordar o problema do erro médico com um pouco mais de profundidade. Como vimos anteriormente, estima-se que 98.000 mortes nos EUA sejam secundárias a erros na assistência à saúde.

Mais recentemente, a literatura médica tem entendido que a expressão erro médico é incompleta, a expressão que melhor expressa esse fenômeno é evento adverso prevenível que caracterizaria um erro na assistência à saúde. Esse erro pode ser do médico assistente, de um outro médico envolvido no tratamento ou de qualquer outra parte da equipe de saúde.

Para abordarmos com clareza o erro médico ou os eventos adversos preveníveis é necessário excluir situações em que haja dolo, como no caso dos médicos que vendiam "células tronco" em cápsulas. Também deve-se excluir condições em que haja negligência óbvia ou recorrente. Estas circunstâncias não fazem parte do escopo desse artigo e são obviamente questões éticas e judiciais.

Por que ocorrem erros na assistência à saúde? Por que médicos e outros profissionais da saúde erram ao abordar um paciente, tanto do ponto de vista diagnóstico, como terapêutico?

A resposta é simples, porque como seres humanos somos passíveis de erro e em processos extremamente complexos como o diagnóstico e tratamento de uma doença, a chance desses erros ocorrerem é na realidade, bastante grande. É comum em medicina considerarmos valores de acerto em 80% das situações não críticas, como um valor bastante adequado. Ora acertarmos em 80% dos casos implica necessariamente que erraremos em 20%, ou seja, duas vezes a cada dez.

Processos não críticos são aqueles em que um erro não traz risco imediato à vida ou risco de lesão permanente a um paciente. Por exemplo, muitos consideram aceitável que a cada 10 pacientes com risco de úlcera por pressão (antigamente conhecida com escara de decúbito) conseguirmos evitá-las em oito; ou ainda, a cada 10 pacientes que devam receber antibiótico em um determinado horário, apenas oito receberem corretamente.

Sabemos hoje que catástrofes na assistência médica, como a morte de um paciente, raramente ocorrem por um erro isolado, mas por uma seqüência de falhas que culmina com uma catástrofe. Esse modelo é conhecido como Modelo do Queijo Suíço.

O fato é que erros acontecem, pacientes sofrem lesões freqüentemente por falhas na assistência médica. Christian Morel em seu livro "Erros Radicais e Decisões Absurdas" aponta três possíveis modelos para explicar a gênese do erro: (1) O calculador amoral, (2) A normalização do desvio e (3) A ratoeira cognitiva.

No próximo artigo, vou discorrer um pouco mais sobre estes modelos e tentar demonstrar que a ratoeira cognitiva é a grande responsável pela maioria dos erros, apesar dos outros dois mecanismos estarem freqüentemente envolvidos.

quarta-feira, 20 de junho de 2007

Cruzando o Abismo

Existe a sensação, muitas vezes velada, de que a qualidade da assistência médica que temos em nosso país é pior que a que poderíamos ter. São freqüentes as notícias de superlotação em hospitais, seus departamentos de emergências, maternidades e unidades de terapia intensiva. Todas as semanas ficamos sabendo de pacientes que morrem aguardando atendimento médico.

Menos freqüentes são notícias de pacientes que morrem devido a erros na assistência à saúde, o que é popularmente conhecido como erro médico. Quando esses erros acontecem, no entanto, é comum tomarem bastante espaço na mídia.

Mas seriam os erros por problemas na assistência médica mais freqüentes do que os noticiados pela mídia?

Em Novembro de 1999 o Institute of Medicine, um órgão da National Academy of Science, publicou o livro To Err is Human (Errar é Humano). Esse livro analisa de forma absolutamente contundente os problemas relacionados a falhas na assistência à saúde em hospitais americanos. Os números são assustadores. O estudo aponta que nos Estados Unidos, a incidência de eventos adversos preveníveis (erros médicos) atingem 2,9% a 3,7% das internações hospitalares, com uma taxa de mortalidade de 6,6% a 13,7%.

Segundo esse estudo, cerca de 98.000 mortes nos E.U.A. são secundárias a falhas na assistência à saúde o que coloca o erro médico como 8a. principal causa de morte, superando a AIDS, o câncer de mama e os acidentes com veículos auto motores. Um estudo do Reino Unido mostra que o custo desses erros na assistência médica pode chegar a 2 bilhões de Libras Esterlinas. Na Austrália estimou-se que a ocorrência de um evento adverso prevenível aumenta em 7 vezes o risco de morte durante uma internação.

Após 25 anos dedicado à assistência médico-hospitalar, tenho certeza que o Brasil não está em situação melhor que E.U.A., Reino Unido ou Austrália. Se extrapolarmos para nosso país os números americanos e do Reino Unido e considerarmos apenas as internações do SUS em 2006, mais de 57.000 pacientes morreram por falhas na assistência à saúde o que supera de longe a mortalidade por AIDS, câncer de mama, câncer de pulmão e perde por pouco da mortalidade por infarto agudo do miocárdio (68.000 mortes em 2004).

O problema é grave e é necessário que haja uma tomada de consciência pelos profissionais da saúde e pela sociedade de modo geral. Há que haver uma verdadeira revolução no modo como prestamos assistência à saúde no Brasil e no mundo. Podemos seguramente repetir a constatação do próprio Institute of Medicine no livro Crossing the Chasm (Cruzando o Abismo): Entre a assistência médica que temos e a que poderíamos ter, não existe um vão, existe um verdadeiro abismo!

domingo, 6 de maio de 2007

O Desafio do Século no Brasil

O Brasil dos últimos anos vive uma verdadeira revolução na área da saúde. Atrasados mais de 40 anos, há cerca de 10 anos iniciamos nossos processos de acreditação hospitalar graças a um grupo de pioneiros que fundaram a ONA (Organização Nacional de Acreditação).

Do universo de 6.498 hospitais brasileiros, porém, apenas 79 (1,2%) tem algum nível de acreditação pela ONA e mais uns poucos outros tem acreditações por outras acreditadoras nacionais e internacionais. Isso mostra que estamos muito longe de imaginar que a qualidade e a acreditação hospitalar sejam uma realidade nacional.

Esse é um fato curioso e assustador. Curioso porque existe uma sensação e exigência da sociedade para que os serviços de assistência médica hospitalar sejam seguros e de qualidade; essa mesma sociedade mantém alto grau de confiança nos médicos. Assustador porque serviços de assistência médica-hospitalar estão longe de oferecer a qualidade e a segurança pretendida.

Implementar programas de qualidade em serviços de saúde requer investimento, requer comprometimento da alta direção e dos funcionários e requer fundamentalmente uma quebra radical nos paradigmas que nortearam essa atividade até o final do último século.

O modo de pensar assistência à saúde precisa mudar radicalmente, não tenho dúvidas de que um dos grandes ralos por onde escorrem milhões de Reais são as complicações secundárias ao tratamento médico.

Mas vamos falar disso mais tarde...